«A multiplicação de identidades é infinita: para além das identidades sexuais, étnicas, históricas, religiosas, etc., podem-se imaginar as comunidades que multiplicam as marcas de pertencimento e, portanto, de exclusão. "O isolamento identitário, traz à luz a recusa do outro". Porém, o que será pior: o isolamento identitário comunitarista ou a multiplicação ao infinito e à absurdidade das identidades que decompõem o ser humano? Não é, no fundo, a mesma coisa?»

Patrice Pavis in "O teatro no cruzamento de culturas"





Que o fogo resolva

1. Um excelente trabalho do Notícias do Norte (de onde tirei a fotografia que ilustra a presente crónica) veio nos lembrar, mais uma vez, como está a situação do Éden Park. Mais uma vez. Mas para fortalecer o impacto, publicou imagens, em vídeo e fotografias. Que não surpreendem mas continuam a chocar. Porque não é novidade. Há anos que andamos a falar disto e nem era preciso. 

2. O Éden Park está na principal praça da cidade do Mindelo, porra! Está ali, à vista de todos. Eu, que uma vez chamei ao Éden Park de Cinema Paraíso, já invejo a sorte deste último, onde pelo menos houve a coragem de aprovar uma demolição e deitar aquilo tudo abaixo.

3. Agora, parece que corre riscos de pegar fogo. Um incêndio, mesmo ali no coração do Mindelo talvez funcionasse para acordar a cidade adormecida. No mínimo, correríamos todos para lá, saltando a fogueira a gritar, Soncent é sabe, é sabe pa cagá, op! E no final, entre cinzas e destroços, íamos para casa certos de que no dia seguinte não estaríamos sujeitos a presenciar o hediondo espetáculo que todos os dias somos obrigados a engolir. 

4. Lembro-me, numa das muitas FIC's do Mindelo, (cuja utilidade questiono, aliás), o Primeiro Ministro ter anunciado, alto e bom som que a cidade iria ter um novo, moderno, amplo e equipado auditório. Apesar de ser na anterior legislatura, lembro-me porque estava lá e o jornalista José Leite veio logo atrás de mim a perguntar "alguma reação?". Lembro-me de ter sorrido para ele e ter dito, "prefiro não comentar. " Foi na há alguns anos e o Éden Park já estava na triste situação em que hoje se encontra. Talvez com mais algumas telhas do que as que tem hoje. 

5. Também ainda não ouvi uma palavra dos responsáveis camarários sobre esta situação. Como se não tivessem nada a ver com a história da cidade que juraram servir quando foram eleitos. Como se o Éden Park não fosse um monumento da urbe que gosta tanto de gritar aos sete ventos que é a Capital Cultural de Cabo Verde. Ainda não ouvi nem vi na comunicação social nem lamentos, nem pressões, muito menos propostas ou soluções. Apenas um silêncio, tão absurdo quanto cúmplice. Mas devo ser eu que ando distraído, só pode!

6. O argumento, quando este assunto vem à baila de tal forma que não se pode evitar um comentário de algum responsável político, seja da administração municipal ou governamental, é que o edifício é privado. Não podem fazer nada. Mas e o interesse público, não conta? O facto de o edifício ter importância histórica e estar ali a apodrecer, não interessa? Não acredito que não possa haver uma solução legal para a aquisição daquele imóvel. Simplesmente, não acredito.

7. O teatro e o cinema continuam a ser artes que provocam grandes paixões numa cidade que curiosamente ou não, não tem nenhuma sala de cinema e apenas um auditório razoável para teatro, muito embora equipado apenas com material de som. Os grupos de teatro da cidade são obrigados a pagar pequenas fortunas para utilizar aquele espaço público. Ao cinema, ainda vá que não vá, a sala é cedida gratuitamente ao cine-clube do Mindelo todas as quintas-feiras. 

8. Mas a arte cénica, por incrível que pareça, continua a ser menosprezada e os grupos hoje procuram desesperadamente vender os seus bilhetes dos seus espetáculos não tanto porque tem muita vontade de ter público - o que seria o natural - mas porque tem que juntar o dinheiro suficiente para pagar pela utilização do auditório, mais os técnicos, mais os custos de montagem, mais isto e mais aquilo.

9. O teatro, que tem sido, é preciso dizê-lo, um importante embaixador da cidade e do país, merecia um pouco mais de consideração e respeito. Mas não. Continuamos sem espaços para apresentar espetáculos, sem salas para ensaiar, sem saber muito bem como concretizar as produções, dependentes de um "dá fala" que resulta melhor ou pior conforme a maior ou menor capacidade de convencer quem decide.

10. O Éden Park corre o risco de arder? Que arda! Duma vez por todas. Quem sabe assim o nosso Primeiro Ministro possa finalmente cumprir a promessa que fez nessa distante FIC e aproveitar o choque nacional, a tragédia patrimonial de um desastre tão tremendo quanto previsível, para em vez de mais uma barragem, um campo de futebol relvado ou uma estrada alcatroada, avançar para a construção de uma infra-estrutura cultural para a cidade que sirva realmente quem precisa e que honre a memória do edifício que de forma tão irresponsável todos deixamos ruir.

Mindelo, 26 de Novembro de 2013






Por achar que é de interesse geral, aqui fica a mensagem enviada por Vasco Martins, a qual subscrevo na íntegra e por isso publico aqui no Café Margoso. Na imagem, coloco dois dos maiores embaixadores da Morna, que admiro muito, Celina Pereira e Bana.

O Dia Nacional da Morna: 3 de Dezembro

Vasco Martins, compositor, músico e musicólogo, propõe que seja instaurado o Dia Nacional da Morna, que seria no dia 3 de Dezembro, dia que o genial compositor de mornas B.Léza nasceu no Mindelo em 1905.

B.Léza compôs das mornas mais originais de Cabo-Verde. Cada uma das suas pelo menos cinquenta Mornas, é um diamante lapidado, uma obra – prima de beleza melódica. Foi o primeiro compositor a sistematizar os famosos ‘meio-tons’ (acordes de passagem), como também os acordes modulativos, e os seus textos ‘mornisticos’ são uma inspirada referência poética.

As mornas ‘Talvez’, Eclipse’, ‘Resposta de segredo cu mar’, ‘Isolada’, ‘Miss Perfumado, ‘ Mar azul’, ‘Noite di Mindelo’, ‘Terra Longe’, ‘Lua nha testemunha’, para citar algumas, constituem um tesouro eterno não só nacional mas também internacional, como já foi evidenciado em muitas partes do mundo.

As suas mornas foram cantadas pelos grandes intérpretes vocais e instrumentais. Podemos citar Bana, Cesária Évora, Titina, Marino Silva, Ildo Lobo, Humbertona, Bau e tantos outros.

Na verdade as mornas de B.Léza , sobretudo as citadas atrás, constituem para qualquer intérprete vocal a sua ascendência à mestria, à perfeição do ‘cantar a Morna’.

B.Léza  inspirou gerações de compositores e intérpretes da Morna e continua a inspirar.

A Morna, no seu sistema de forma musical que requer um criador, um compositor, parte primeiro do princípio da criação, para depois se expandir pelos outros sectores importantes: os intérpretes, o público, os produtores, os investigadores, como não podia deixar de ser em todas as situações interdependentes.

É interessante apontar que existe atualmente o Dia Nacional do Choro no Brasil (ou popularmente chamado ‘Chorinho’), mas que estranhamente foi instaurado primeiramente um Dia do Choro em França e no Japão por melómanos do Choro desses países.

Vasco Martins sugere que talvez não devêssemos cometer o equívoco do Brasil. Que sejamos nós, cabo-verdianos, a instaurar o Dia Nacional da Morna e termos a honra de ‘convidar’ o luminoso compositor B.Léza para ser o símbolo do Dia Nacional da Morna, tendo como data o seu aparecimento neste universo, numa das ilhas deste Arquipélago magicamente ‘mornista’.


Agradecemos o vosso interesse.
Os nossos cumprimentos.

‘Alauda razae divulgação’
(‘Alauda razae divulgação’ dedica-se à divulgação e promoção da obra de Vasco Martins em todos os domínios que a sua obra abrange)




A todos os níveis, em todas as diferentes realidades sociais, políticas e económicas, central ou municipal, a diferença entre o discurso e a realidade, entre a teoria e a prática, entre o expectável e o alcançável é tão grande, que mais uma vez se comprova que em Cabo Verde aquilo a que tão facilmente se chama de "sociedade civil" é tão real como o petróleo anunciado de tempos em tempos como uma possibilidade séria para o súbito enriquecimento do arquipélago. A lógica é uma e só uma: fala pela minha cartilha e terás uma recompensa diretamente proporcional ao teu entusiasmo e capacidade de defender a causa. Seja ela qual for, sê convincente e o que é teu, está guardado. E assim continuamos, neste sono profundo, de quando em quando perturbado por anúncios de execuções sumárias em plena via pública, na verdade, coisa pouca se comparada com o oásis que todos os dias nos procuram impingir.






"Passamos de analfabetos funcionais a intelectuais funcionais, contudo, a nível socioeconómico, desenvolvemos muito, uns mais de que outros, tanto mediante os parâmetros do BM e FMI, como de acordo com os parâmetros dos que estão no poleiro. A boa governação, a tal ferramenta da continuidade colonial, usando o termo de Varela, nos diz que somos os maiores em África e arredores, fortalecendo a teoria salazarista de pretos especiais… e o cabo-verdiano continua com a tal vaidade de julgar que sabe muito e que é o maior, tal e qual Cabral deu conta… e na ausência do suicídio de classe apontada acima, uma espécie de homicídio de classe aparece como uma opção bastante viável. Mas pronto, realismos à parte, o que fica é que derrotamos o colonialismo, tornamo-nos independentes e viva nós!"

Redy Wilson Lima - ler o artigo completo, aqui




O Tocador de Boxer's


SP - Opções para esta história: depois da febre dos intelectuais, dos opinion lideres, dos experts, dos artistas, dos investigadores, vem aí o dos activistas e dos cabralistas. nada como a auto-promoção/proclamação, já dizia o leite matinal "se eu não gostar de mim... quem gostará?"

JH - Eu cá estou esperando pacientemente a minha vez... quando é que a febre dos tocadores solitários de cavaquinho vai chegar? Bom, de qualquer forma, quando chegar, que esteja acompanhada de uma cavala frita com malagueta...

SP - Auto proclama-te Jeff Hessney. Começa pelo Facebook: coloca no campo ABOUT "tocador solitário de cavaquinho", depois escreve um artigo sobre a tua história enquanto tocador solitário de cavaquinho. Como foste o primeiro, como és o maior, como poderás ensinar o povo das ilhas a ser 1. tocador 2. solitário 3.de cavaquinho e, mais difícil, os 3 ao mesmo tempo. E se alguém ousar contribuir para a tua prática como se já o fizesse há muito tempo ou simplesmente queira trocar experiências, incorpora uma postura autista e simplesmente ignora o interlocutor atrevido. Afinal, só tu sabes o que é ser tocador solitário de cavaquinho e todos os outros devem-no a ti! Aproveita e dita um feriado, mês, ano, semana alusiva à coisa.... os media irão adorar. Simples Jeff, lamento informar-te que não estás só: mas acredita.

JH - Posso fazer tudo isso de boxer?

SP - Se quiseres... mas há muitos reis a andarem nus por aí, achas que boxer fará a diferença?

JH - O meu boxer, sim!

SP - By the way, vem ao barlavento, dado que queres cavala frita, e aproveita o festival kavala fresk.

JH - Período de defesa já kabá?


Texto inicial e conversa de Samira Pereira com Jeff Hessney, no Facebook




“A Tempestade”, escrita pelo grande dramaturgo William Shakespeare foi provavelmente a sua última obra teatral e a mais singular, na opinião de alguns críticos. Essa extraordinária narração é, ao mesmo tempo, uma história de vingança e de perdão, de dor e de reconciliação, de traição e de lealdade, de amor e de ódio, em suma uma história de contrastes, concebida algures numa pequena ilha provavelmente perto da Itália, no início da segunda década do século dezassete. 

 Transportada no tempo e no espaço físico, e com cenário fincado nas ilhas Cabo-verdianas de Santiago e Santo Antão, o grupo de teatro do Centro Cultural Português do Mindelo e o grupo de teatro Craq’Otchad, recriaram e montaram “Tempêstad”, para gáudio de uma plateia rendida à magia de uma representação surpreendente e de qualidade monumental, onde não faltaram elementos visuais e sonoros, desde a sobriedade do cenário, o primor nos figurinos, a luminotecnia com efeitos muito bem rebuscados, uma sonoplastia inventiva com música ao vivo (coros, percussão, violoncelo, flauta e saxofone), e sobretudo uma representação e interpretação exímia dos actores, de todos sem excepção. 

Gostaria, contudo, de ressaltar três interpretações que em minha opinião marcaram de forma destacada a peça “Tempêstad”. 

Emanuel Ribeiro (que regressa ao teatro, quase duas décadas depois), com uma pujança de fazer inveja, e empresta ao seu personagem Próspero, rico proprietário da ilha de Santiago e exilado na ilha das montanhas, uma verve admiravelmente poética de versos do texto original de Shakespeare, que nos chegam à catadupa, adaptados com requinte, à nossa língua materna. 

João Branco mais uma vez nos relembra a sua polivalência e competência nas diversas áreas do teatro, pois além de responder pela encenação e direcção artística, composição e direcção musical, e figurinos da peça, interpreta Caliban, ser disforme e bestial, pelo que forçosamente teve de recorrer a uma caracterização bem aprimorada com resultados visual e estético bem condizente com a figura. Não passa despercebido a ninguém, a forma como o João Branco se entrega por inteiro e parodia com gozo o seu personagem, numa capacidade de doação completa. 

Christian Lima interpreta Ariel, o espírito multifacetado do ar, da água e do fogo. Uma soberba actuação que marca não só pela excelente caracterização, mas também e mais uma vez, pelo preciosismo de uma deliciosa linguagem prenhe de poesia que chega como sussurros, vindos do etéreo, e preenchem os espaços e penetram os corpos dos espectadores. 

Depois de Romeu e Julieta, e Rei Lear, “Tempêstad”, é o terceiro parto bem sucedido, dessa tríade Shakespeariana, magistralmente encenada em crioulo Cabo-verdiano, por João Branco, uma obra prima que é mais um contributo para o crescimento e afirmação do teatro que se faz em Cabo Verde, com o selo da crioulização dos grandes clássicos do teatro Mundial.


 Texto sobre a peça "Tempêstad", de João  Faria; fotografia de Diogo Bento






Excelente! Adoro este pessoal da AOJE. Grande abraço para o Diogo e Doca. Fantásticos companheiros e grandes apaixonados pela arte da fotografia. Durante um mês, na cidade do Mindelo vão-se ouvir muitos clic's, clic's. clic's!




Esta tarde, no Jornal das 5 da Rádio Morabeza, a deputada nacional do PAICV, Filomena Martins, proferiu declaração em que justifica a alta taxa de desemprego em São Vicente com o aumento da natalidade, explicando que "o número de nascimentos é superior à capacidade da economia gerar empregos."

Sinceramente, esta é a primeira vez que vejo um facto ligado ao outro assim de uma forma tão umbilical (o termo aqui encaixa como uma luva, diga-se de passagem), e muito embora demografia e economia até sejam ciências se não irmãs, pelo menos primas, não deixei de ficar espantado com tão original teoria.

Duas coisas podiam acontecer desde já: em primeiro lugar, ocupar o imenso espaço vazio e desaproveitado do tão prometido e falado parque industrial de S. Vicente e colocar no muito curto prazo lá a funcionar várias unidades fabris para o fabrico de preservativos - camizinhas, em linga di terra - em que metade da produção fosse para exportação e a outra metade para distribuição gratuita pela população. Matavam-se dois coelhos numa cajadada só, por um lado fomentando o emprego com os milhares de postos de trabalho criados com a indústria de camisinhas, projetando a marca Mad in Cabo Verde, quiçá de Soncent, por todo o mundo (imaginam um eslovaco ou um canadense, cada um dos respectivos países, a meter a mão no bolso para a urgente camisinha e verificarem que aquilo foi fabricado em Cabo Verde? Nem Cesária conseguiu ir tão longe como embaixadora do país!). Por outro lado, como é lógica imediata, a utilização massiva de camisinhas por parte da população, principalmente a mais jovem, permitiria uma diminuição abrupta da natalidade. Uma medida, duas consequências imediatas: mais emprego, menos natalidade. Genial, não?

O segundo acontecimento é ainda mais óbvio: a deputada deve ser tida em conta, pelo menos ao nível das nomeações, para o próximo Prémio Nobel da Economia. É o mínimo! 



Faleceu hoje uma das mais extraordinárias pessoas que conheci.
Sérgio Grilo, até sempre!

(foto Jorge Martins)




Resistir é vencer, era este o lema dos guerrilheiros timorenses que durante décadas lutaram com armas desproporcionais contra o invasor indonésio. Acreditaram sempre e hoje, com todas as suas fragilidades, são uma nação livre e independente. 

 E é este mesmo o meu lema desde sempre. Resistir. Há vinte anos que resisto e que com inúmeros outros companheiros – que vão e vem – construo este caminho que muitos reconhecem relevante para o desenho do histórico teatral cabo-verdiano.

Contra compadrios, perseguições veladas, tratamentos desiguais, invejas e frustrações pessoais, dificuldades estruturantes, falta de incentivos e de respeito, condições de trabalho de extrema dificuldade, orçamentos mínimos, obstáculos vários, maus entendidos, julgamentos precipitados, silêncios e não respostas, falta de compromisso, seriedade e por vezes de caráter de uns quantos que se vão cruzando no meu caminho, o meu dia a dia, tem sido um não parar de produzir, de fazer o que mais gosto com paixão e entrega, de tentar – umas vezes melhor, outras pior – crescer enquanto artista, contribuindo para que a arte cénica crioula seja também ela maior, atrevida, criativa, ousada, competente e destemida. 

Como já disse tantas vezes, é lá que vou morrer. Fazendo. Em acção e movimento permanente. Não tenho vocação para poste, muito menos de eletricidade que, pelos vistos, falha em alturas bastante convenientes. Para mim, obstáculo é incentivo. Cada contratempo é transformado em energia que se renova a cada fôlego. E quanto este me faltar, é lá, nas tábuas do teatro, que vou estar até ao fim. 

O resto é digestão.


Fotografia de Diogo Bento






Segundo Jornal A Semana "O Tribunal do Tarrafal de Santiago condenou Ismael dos Anjos Correia a três anos de prisão efectiva por abuso sexual de uma criança de cinco anos. O homem ainda deve pagar 250 contos de indemnização aos pais da menor." 

 Se o Código Penal crioulo aplica estas penas ridículas para crime tão hediondo, não é com campanhas de sensibilização que combatemos este flagelo nacional. Como dizemos em "Teorema do Silêncio", há que quebrar o silêncio e penalizar, de forma séria e responsável quem abusa sexualmente das nossas crianças. Como está, é uma vergonha!





Caliban, ban, ban! Esta personagem acaba comigo. Chego em casa todas as noites, cheio de dores, quebrado, cansado, esgotado, mas sempre com a sensação do dever cumprido. O meu único desejo é que todos os que possam, gente de teatro e gente que não seja de teatro mas que aprecie um trabalho de qualidade, possa estar nestes três dias para ver esta equipa incrível e generosa em cima do palco. Vinte e duas pessoas no palco, outras tantas que deram o seu contributo "deste outro lado", todos eles merecem, certamente, uma visita. E aí, vamos ao teatro este fim de semana?




Estamos todos enganados

1. Há dias, conversando com um amigo, chegamos à conclusão que o maior problema de Cabo Verde não é a pobreza de espírito, o descaramento, a falta de zelo, o compadrio, a lei do menor esforço, a falta de criatividade, a violência urbana, a incompetência, mas algo que reúne tudo isso numa coisa só. O nosso maior problema é mesmo um problema de mentalidade. E grave.

2. Voltamos ao mesmo. À mesma luta de sempre. Ao mesmo tema, porque não consigo ficar calado. A mais recente declaração aqui no Café Margoso, sobre a forma como está sendo implementada a disciplina de Expressão Dramática nos Liceus, teve até honras de primeira página num semanário da praça. A defesa da representante do Ministério de Educação foi inócua, vazia e encara o problema como quase sempre fazemos por cá: enfia a cabeça na areia, empurra com a barriga e siga o baile porque tudo está bem quando acaba bem. Problemas? Não! Há bagagem! Nós é que estamos todos enganados!

3. Mas a verdade é que não está bem. Não, não há bagagem, nem materiais pedagógicos de apoio, muito menos preparação metodológica para dar esta disciplina dentro das salas de aula. O último sinal foi-mo dado ontem. Como saberão, estamos em vias de apresentar no próximo fim de semana uma curta temporada de "Tempêstad", adaptação crioula da obra maior do génio da dramaturgia universal, William Shakespeare. Que melhor oportunidade do que esta, no Mindelo, para enriquecer uma disciplina que devia falar de teatro?

4. Fiz questão de entrar em contacto com os professores de Expressão Dramática aqui do Mindelo, enfatizando o fato de que a melhor forma de se falar e transmitir conhecimentos sobre esta arte, é vendo, é sentindo, é fazendo parte, é estando ali, na plateia. No teatro, tem que se ver para crer. Para se entender. Mesmo que seja para se concluir que aquilo não nos interessa para nada. Ver teatro para falar sobre teatro, essa sim é uma bagagem fundamental.

5. A resposta foi a esperada, mas mesmo assim, desanimadora. A única professora que se deu ao trabalho de falar com os seus alunos pediu que estes solicitassem autorização dos pais e encarregados de educação. A esmagadora maioria não obteve autorização dos pais para ir ao teatro! Isto é mesmo verdade? É uma comédia ou uma tragédia?

6. Não me espanta nada se alguém me disser que muitos destes jovens, agora não autorizados a usufruir de um bem cultural que pode vir a ser também uma importante ferramenta pedagógica numa disciplina curricular, fossem os mesmo que pululavam nas ruas do Mindelo, bebendo e fumando, na grande paródia do Halloween que as casas nocturnas ofereceram no passado fim de semana, a troco da módica quantia de mil e quinhentos escudos.

7. Depois, queixem-se! O mal começa em casa, nas famílias e continua na escola, até porque houve professores que nem se dignaram em responder à mensagem em que se fazia o convite aos seus alunos, procurando criar condições (leia-se, preços muito mais baratos), para irem ao teatro, ver uma obra de grande qualidade cénica, plástica, artística e toda ela, nossa, crioula, cabo-verdiana. Levar os alunos ao teatro? Eh, caramba, isso dá muito trabalho!

8. Mostrei-me disponível, mais uma vez, para ir às salas de aula, e depois do visionamento da peça, falar da mesma, das nossas opções dramatúrgicas, artísticas e estéticas. Ouvir as questões dos alunos - se as houvesse - e esclarecer todas as dúvidas e curiosidades. Mas assim, perante este silêncio, como fazer? Como avançar? Como crescer?

9. A minha parte está a ser cumprida. Coloco, com o meu trabalho e de uma enorme equipa de gente dedicada e competente, um produto artístico de altíssima qualidade (perdoem-me a imodéstia) ao serviço da comunidade. Incluindo a comunidade estudantil. Se isto não interessa, então mais uma vez estamos a ir pelo caminho errado e promover a disciplina de Expressão Dramática nas escolas é só mais um bluf, que apenas servirá os relatórios que, como tantas vezes acontece, são feitos para nos convencer que a realidade é muito melhor do que aquela que vemos todos os dias.

Mas nós, claro, é que estamos todos enganados!







Segundo a representante do Ministério da Educação, e em resposta ao meu artigo no Café Margoso, "Os professores estão devidamente capacitados" e que o MED "garante aos docentes essa bagagem" (para lecionar Expressão Dramática nas escolas e liceus de Cabo Verde). Fiquei muito mais descansado.





E pronto, mais uma vez Mindelo está em festa! Prepara-se ali na marginal um mega-super-potente trilho eléctrico, festas em pontos estratégicos nomeados a partir de filmes de terror famosos tipo Carrie, Psico etc e tal, o preço? uma pechincha, mil e quinhentos paus e não se fala mais nisso! Carnaval no Outono, batucada na morada, milhares de decibéis invadindo ruas e becos, roupas a condizer com a ocasião. Esta é também certamente mais uma actividade que vai incentivar a economia local, o comércio, os transportes, as telecomunicações e pronto, é isso, Mindelo está em festa novamente! Sabe pa cagá!

Que se lixem a crise, os representantes do Governo que estão prestes a ser nomeados para as ilhas - dejá vú, dejá vu! - a pasmaceira, a falta de produtividade, perspectivas ou emprego, as pequenas fortunas que se gastam cada vez que vamos fazer compras na Fragata, a tristeza, os cassubodis, os compadrios, as putas precoces a preço de saldo, os crimes contra o património da cidade ou as dezenas de vezes que crianças e medingos te estendem a mão a pedir esmola, quem sabe se para tentar juntar os tais mil e quinhentos paus que a paródia exige, que "nos também é fidje de deus e no tem dret a diverti também"! A cidade está em festa, é isso que interessa. 

E desta vez, é coisa séria, como sempre aliás! Afinal de contas, o halloween é "um evento tradicional e cultural, que ocorre basicamente em países de língua inglesa, mas com especial relevância nos Estados Unidos, Canadá, Irlanda e Reino Unido, tendo como base e origem as celebrações dos antigos povos Celtas do Século III". Mindelo não é, sempre foi, influenciado pelos ingleses? Então, está tudo bem! Let's go party!















E vocês, vão perder?





Há séculos que te esperava para fugirmos. E não sabia 
que a fuga era possível, pelas estradas de giestas em 
direção ao mar. Dorme, e consente que o meu coração 
escute o teu. Quero arder contigo, nesta eternidade feita 
de pontes atravessadas, kms noturnos e segundos de asfalto. 


 Al Berto, in "Dispersos"




Nos últimos dias algumas pessoas entraram em contacto comigo perguntando se eu não teria algum "material", com exercícios de teatro, incluindo de expressão corporal, vocal, dinâmicas de grupo, improvisação ou informações compiladas de história da arte cénica. Fiquei curioso pela coincidência de, num curto espaço de tempo, receber o mesmo pedido, com poucas variações, sendo que o comum em todos eles era a urgência em poder ter algum material pedagógico nas mãos.

Claro que não era coincidência. Está a decorrer no sistema de ensino cabo-verdiano uma reforma curricular e em algumas turmas "experimentais" resolveu-se considerar a disciplina de Expressão Dramática. Essa é, sem dúvida, uma fantástica notícia. O que não se compreende é que não tenha havido qualquer formação em exercício para os professores que forem ministrar essa disciplina. E tirando uma ou outra excepção, estes professores não estão minimamente preparados para lidar com um conjunto de técnicas que podem ser valiosas ferramentas de ensino, mas que para o serem, tem que ter alguém com experiência, conhecimento e o mínimo de formação na área.

Sendo o teatro uma forma de expressão artística que mexe com o ser humano na sua globalidade - chamo-lhe a arte dos 3 "Cês" precisamente porque implica trabalhar com corpo, coração e cabeça - ter gente mal preparada à frente desta disciplina, é um ato da mais pura irresponsabilidade. Segundo informações que me foram dadas, temos professores formados em artes visuais, arquitectura, ciências sociais e até engenharia a quem foi dada a responsabilidade tremenda de desenvolver e experimentar a disciplina de Arte Dramática a adolescentes nos liceus de Cabo Verde. Não se percebe porque não houve uma formação prévia, uma preparação metodológica, uma abordagem pedagogicamente aceitável para que estes profissionais da educação possam fazer um trabalho nas mínimas condições.

Feito assim, às três pancadas e desta forma irresponsável, a introdução da Arte Dramática nas escolas de Cabo Verde pode vir a transformar-se num tremendo tiro no pé de todos os envolvidos, a começar pelo próprio sistema educativo. Já agora, coloquem-se licenciados em matemática a ministrar português, sociólogos como professores de educação física ou advogados a ensinar química-física. Se vale para o teatro não ser preciso saber o que se ensina, então que se estenda este criativo método a todas as valências do ensino e que o Google e a Wikipédia nos salve a todos! 

Que fique claro desde já para quem não sabia: ensinar teatro ka é brinkadera!






«Quanto à mensagem, não sei... Não há mensagem. A melhor coisa é deixar a intuição e a imaginação agirem. É verdade que eu quero dizer com força qualquer coisa difícil de formular, qualquer coisa de escondido; mas são os espectadores que têm de o descobrir, senão tudo seria tosco e grosseiro; são vocês que têm de o descobrir, eu não posso proceder demasiado directamente. Frente a certos valores, é preciso, acima de tudo, sensibilidade.»

Pina Bausch






Uma iniciativa muito feliz do Centro Cultural Português - Pólo do Mindelo, fazendo a ligação entre a cultura, história e o passeio. No próximo Sábado, será a ver do teatro. Vamos?






A noite de ontem foi especial por dois acontecimentos que passo a relatar de forma resumida: primeiro, apresentamos a peça "Teorema do Silêncio" em Nova Sintra, ilha Brava, para um público atento, ávido de teatro, curioso e, à medida que a peça avançava, emocionado e generoso. Este não é um espectáculo qualquer. É um texto difícil, um tema actual mas sempre complexo, uma encenação que é tudo menos óbvia, onde o que parece não é e o que é nem sempre parece. A reacção de quem muito raramente tem acesso a este tipo de bem cultural foi surpreendente. No final, várias pessoas chegaram até nós, agradecendo, de lágrimas nos olhos, o facto de termos, com a nossa arte, quebrado o silêncio para um assunto tão delicado (o abuso sexual de crianças). O nosso trabalho saiu valorizado e de novo se demonstra da profunda necessidade de trabalharmos para uma universalização do acesso aos bens culturais, em todos os cantos do nosso Cabo Verde. Seja lá onde for, existem pessoas que querem, precisam e estão dispostas a personificar esta troca tão bela. Como a que aconteceu nesta apresentação inesquecível.

Um pouco mais tarde, pelas ruas de Nova Sintra, um grupo razoável de amantes da morna corporizaram uma belíssima serenata, com as mornas de Eugénio Tavares, cantadas de forma incrivelmente harmónica e afinada, principalmente pelas muitas mulheres do povo ali presentes. Foram horas inesquecíveis. Belas. Tocantes. Algumas mornas belíssimas que eu nunca tinha ouvido e que, segundo me informaram, nunca foram gravadas (para meu espanto!). A alma de Cabo Verde se revela quando a morna é cantada. E não só! Uma estrangeira que vive por cá há alguns anos, e assistia a tudo chorava ao ouvir o coro cantando em êxtase a morna "Força di Cretcheu". Perguntei-lhe porque chorava ela e disse-me: "não sei explicar o que é. Mas ouvir esta música faz-me sentir saudades de casa."

No Dia Nacional da Cultura de Cabo Verde a morna se revela, mais uma vez, o eixo que nos liga a todos, de ponta a ponta, de Sul a Norte, de Este a Oeste, que une todas as diásporas de todos os universos crioulos. Eugénio Tavares se revela, mais uma vez, o patrono ideal num dia que é um dos mais importantes de ser-se comemorado. E, mais uma vez, no cantinho deste querido arquipélago, sou tocado de novo de forma inapelável, por um povo generoso e belo, que transforma esta nossa passagem pela vida numa aventura mais do que fantástica.




Quando se descobre que alguma teoria científica explica um fenómeno com o qual somos confrontados praticamente todos os dias e nunca conseguimos explicá-lo apesar da forma arrebatadora como esse fenómeno perturba as nossas vidas, temos motivos para festejar. Mais ainda quando essa teoria, mesmo que possa ter uma designação complicada que advém do fato de ter obrigatoriamente o nome dos teóricos responsáveis pela sua criação, está explicada numa linguagem acessível a todos, sem grandes palavrões científicos ou conceitos que mal somos capazes de ler quanto mais entender.

Quantas vezes já nos cruzamos com indivíduos "que possuem pouco conhecimento sobre um assunto" mas que mesmo assim "acreditam saber mais que outros mais bem preparados, fazendo com que tomem decisões erradas e cheguem a resultados indevidos, porém esta própria incompetência os restringe da habilidade de reconhecer os próprios erros."? Não é espantosa a familiaridade com esta descrição?

Segundo ainda explica a teoria "estas pessoas sofrem de superioridade ilusória. Por outro lado, a competência real pode enfraquecer a auto-confiança e algumas pessoas muito capacitadas podem sofrer de inferioridade ilusória, achando que não são tão capacitados assim e subestimando as próprias habilidades, chegando a acreditar que outros indivíduos menos capazes também são tão ou mais capazes do que eles." Onde é que já vimos e ouvimos isto? Não foram já vezes demais?

A campanha de vacinação nacional que vai começar em Cabo Verde contra o sarampo e a rubéola é uma excelente notícia para a saúde pública nacional. Mas faço desde já aqui o apelo para que no dia em que se encontrar uma vacina para combater o Efeito Dunning-Kruger - o nome complicado do simples mal que assola os dias de hoje - se faça uma campanha de vacinação com a mesma extensão, de preferência começando pelo maior grupo de risco, os detentores dos diferentes poderes que de forma tão incompetente, empatam as nossas vidas. 





Viciados

1. Há atitudes, posturas e até percursos que apenas o vício consegue explicar. Escrevo isto a propósito de um comentário do diretor e grande amigo Márcio Meirelles, numa conversa recente. Ao saber que tínhamos montado a nossa versão crioula de “A tempestade”, de Shakespeare, em apenas 45 dias, com uma equipe de 24 elementos, onde, só por raras vezes, se conseguiam juntar todos na sala de ensaio, com parte do elenco em viagem para fora de Cabo Verde por terem compromissos relativos a outras apresentações, e somado a tudo isto, o fato de a estreia se dar em pleno epicentro do Festival Internacional de Teatro do Mindelo – Mindelact, fez com que nos olhasse incrédulo e sorrisse, com aquela aparente mansidão de quem acolhe um vulcão no peito. “Somos loucos, não somos?”, perguntei-lhe. “Não”, respondeu ele, “o que vocês são é viciados!”

2. Esta coisa do teatro é algo que poucos conseguem explicar mesmo sabendo que muitos – quase todos nós – temos prontas para atirar em cima da mesa, nas conversas e discussões entre os nossos pares, múltiplas teorias de índole das mais variadas, seja na área da teoria e história de arte, sociologia, psicologia social, antropologia ou ciência política. Por que fazemos; por que teimamos; por que nos importamos; por que nos sacrificamos; por que nos sujeitamos; por que sentimos prazer na morte inevitável a cada criação que passa; por que somos por vezes tão masoquistas? Numa oficina que tive o prazer de realizar com o mesmo Márcio Meirelles, no mítico e fenomenal Teatro Vila Velha, em Salvador, esse foi o questionamento básico: por que fazemos teatro? Cada um dos cerca de 30 participantes deu o seu depoimento, necessariamente curto e improvisado ali, no momento. Uma das respostas que ficaram na minha memória foi esta “eu faço teatro porque não sei não fazer teatro”. Querem melhor definição de vício do que esta?

3. Mas o teatro é um vício diferente, embora seja também uma droga que pode provocar perigosos efeitos colaterais, tais como ataques de ansiedade, desequilíbrios emocionais, atritos familiares, crises financeiras, hecatombes matrimoniais, lesões físicas, momentos de delírio, períodos mais ou menos prolongados em que os cuidados com a alimentação ficam relegados para segundo plano, e por aí vamos, nesta estrada sempre sinuosa que por mais extraordinária que nos possa parecer, tendo em conta todas essas aparentes sequelas, não tem nada nem ninguém que nos faça desviar do nosso caminho. Uma vez nela, sempre nela. O teatro é assim, vicia a gente. Não podemos passar sem ele e todas as justificativas que cada um de nós possa dar para essa insanidade que invade nossas vidas, só piora a situação. Como os viciados, não há justificação. Apenas desculpas esfarrapadas. Ou, no nosso caso, ainda pior, teorias pretensamente científicas. 

4. Milanka, atriz cabo-verdiana, escreveu, há dias, num comentário no Facebook, a seguinte frase: “A falta de teatro faz a gente menos gente." É uma das melhores frases dos últimos tempos sobre este assunto e uma claridade se apresenta  perante nossos corações e, sobretudo, as nossas cabeças. É isto mesmo. Garcia Lorca já o tinha dito – e muitos outros disseram também, frases e poemas, recados e obituários, ditados e pequenos hinos – sobre o quão fundamental é o teatro nos tempos que correm, principalmente nos tempos que correm, tal como já o tinha sido no passado, nos tempos que correram então, há dezenas, centenas ou milhares de anos. Por coincidência, ou talvez não, as mais fantásticas palavras escritas sobre a arte cénica têm o denominador comum de terem sido escritas por gente de teatro, dramaturgos, atores e atrizes, diretores, artistas plásticos, cenógrafos, poetas, dançarinos e acrobatas, palhaços, ilusionistas. Sim, é um cliché, mas é isso mesmo: outra coincidência com a droga – só quem experimentou pode entender o que é isto do teatro nas nossas vidas!

5. Aqui na cidade do Mindelo, bem no meio do Atlântico, nasceu uma nova companhia de teatro. A Trupe Pará Moss – TPM, apresentou-se com três espetáculos diferentes em três dias, um deles em estreia. Neste novo grupo, que tive o prazer de acompanhar durante os dois anos de formação teatral, existe de tudo um pouco, caleidoscópio social da cidade e do amor que esta dedica ao teatro: uma psicóloga, um cortador de vidro, vários estudantes, um militar em início de carreira, uma brasileira apaixonada, um monitor de um centro de apoio a tóxico-dependentes, um operário de uma fábrica de enlatados de peixe, alguns desempregados, dois ou três licenciados. Muitos deles, depois de oito horas de duro trabalho nos respetivos empregos, vão para os ensaios com uma energia e uma disponibilidade que envergonha muitos atores ditos profissionais com os quais tenho cruzado nesta caminhada. 

6. É por isso que faz sentido falar de vício. E hoje também faz sentido recordar uma belíssima frase dita por um conceituado diretor português, Luís Miguel Cintra: “Para cada nova companhia de teatro que nasce deveriam nascer mil estrelas no céu”. O céu de Cabo Verde, esse, ficou um pouco mais brilhante nos próximos dias.

Mindelo, 12 de Outubro de 2013

Crónica também publicada no Portal da SP Escola de Teatro (aqui) Fotografia: Trupe Pará Moss, "As Mindelenses" (2013), de Nelson RIbeiro





Se tivesse sido assim?






Um Bolero de Ravel muito especial, pelo músico Rui Belo, com a mais bela paisagem do mundo





"O jovem “empreendedor” acha que por a sua empresa de aluguer de bicicletas a turistas se chamar “lx bike tour experience” ou que por propor uma marca de café com leite sob o nome “gallonize your life” irá reinventar a roda. A difusão desta ideia é essencialmente propagandística ao sugerir uma reorganização do trabalho em modelos cada vez mais isolados, autónomos e desprotegidos enquanto última tábua de salvação no naufrágio que é a crise. Uma mínima percentagem destes novos empresários irá triunfar constituindo mini-núcleos de exploração brutal e todos os outros irão terminar enquanto reforço da mão-de-obra barata ou, na melhor das hipóteses, organizando-se dentro de um aparato ideológico de assistência ao “empreendedorismo”."

Luhuna Carvalho (aqui); ilustração de Hossein Zare










Belíssimo trabalho da fotógrafa criativa e artista Anja Stiegler. 






Que legenda para esta imagem?

À melhor legenda, ofereço um café 







Se houvesse algum índice para medir a nossa capacidade de sacudir a água do capote e colocar a culpa dos nossos fracassos nos outros, esse seria certamente mais um item onde Cabo Verde se poderia orgulhar de ficar nos lugares cimeiros. 

Já não há paciência. Ninguém assume as responsabilidade de nada neste país. A culpa nunca morre solteira, ao contrário do que diz o ditado. A culpa tem uma série de amantes com as quais nunca se deitou nem sabia da sua existência. Então se é necessário alguém com um cargo de maior responsabilidade assumir a sua quota parte no esterco que por qualquer motivo ficou à vista de todos (por alguma razão, se utiliza muito a expressão, "isto ainda vai dar merda!"), nada mais fácil do que atirar a culpa para cima do vizinho, do subalterno, de um qualquer anónimo que, de um dia para o outro, se vê obrigado a carregar todo o peso do universo inteiro nas suas costas. 

O último dos bodes expiatórios, que provavelmente se vai tornar uma celebridade instantânea, é uma até aqui anónima secretária da Federação Cabo-verdiana de Futebol. Segundo revela um jornal da nossa praça, "antes do jogo contra a Tunísia, a FIFA comunicou à FCF que o castigo de quatro jogos ao defesa Fernando Varela mantinha-se, pelo que não deveria jogar a última partida da fase de grupo. Mas o documento foi arquivado sem que o presidente da FCF, Mário Semedo e o seleccionador Lúcio Antunes tomassem conhecimento do assunto. " E pronto, assunto esclarecido! 

Um processo em cima da senhora e as centenas de milhares de cabo-verdianos iludidos com a possibilidade - bem real - de ver a sua selecção nacional de futebol num campeonato do mundo, ficarão logo descansados e aliviados. Foi encontrada a culpada! Claro que o facto de haver um castigo a um jogador, num jogo depois anulado, e de os regulamentos da FIFA claramente dizerem que a anulação do jogo não anula a penitência em caso algum, não vem aqui para o caso. 

Mais do que incompetência, tratou-se aqui de irresponsabilidade. Ou se quisermos ir mais longe, de estupidez. Só isso explica a utilização de um jogador nas circunstâncias em que o defesa Varela foi utilizado.No entanto, nada disso importa mais. Segundo se descobriu agora, a culpa foi da secretária da federação. Cabo Verde pode, finalmente, dormir tranquilo.





É por Ti que Vivo

Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

António Ramos Rosa, in 'O Teu Rosto'








Ao ler este testemunho sobre o estado de degradação do antigo Liceu Gil Eanes, depois Escola Preparatória Jorge Barbosa, do meu bom amigo Joaquim Saial, no seu blogue Praia de Bote, pouco mais há a acrescentar. Foi lá que tive o meu primeiro emprego quando estive a dar aulas (de Ciências da Natureza) durante dois anos e olhar para o estado de degradação dá uma raiva muito grande. Estão à espera que caia tudo? Temos ali um novo Éden-Park? Até quando Mindelo vai continuar assistindo à podridão que o invade, quieto e calado? Até quando? 

"Não lho disse, mas ainda lho direi, que ninguém parece estar interessado nisso, que a indiferença reina, que a memória dos grande cabo-verdianos que por ali passaram não parece ser suficiente para alguém arranjar uns tostões para uns míseros sacos de cimento e para uns baldes de tinta... Ao ver a sua velha casa degradada (em rua próxima do liceu), ao ver o velho liceu a entrar em ruína, as lágrimas afloraram-lhe aos olhos, como ele me contou. Enfim, ao deparar-me com estas imagens que partilho com os frequentadores da Praia de Bote, também as minhas pálpebras se molharam. Era inevitável...

Termino, dizendo que se houver um movimento local que se abalance à tarefa da recuperação deste edifício mais que simbólico, finalmente uma vaga de fundo credível construída por gente séria, terei um cheque disponível para oferecer, com montante correspondente à saudade e à dívida contraída para com ele."

Joaquim Saial

Já não passo pela Praça Nova, porque ver o Éden-Park naquele estado dá-me náuseas. Ao que parece o dono do imóvel estaria preso num outro país. Agora, isto. Vamos continuar, alegremente a assistir a este triste espetáculo?

Espero, ansiosamente, que o meu querido amigo Manuel Brito Semedo, pessoa sempre sensível para estas questões de património, consiga, enquanto vice-reitor da Universidade de Cabo Verde, dar o impulso que falta para a reabilitação deste importante e histórico edifício!





No passado fim de semana, na cidade do Mindelo, a Trupe Pará Moss, grupo de teatro recém-criado e oriundo do 14º Curso de Iniciação Teatral do Centro Cultural Português, apresentou uma série de 3 diferentes espetáculos, o que só por si, é um acontecimento. Mas não é sobre isso que vou falar hoje.

Uma das peças, "As Mindelenses", foi apresentada pela 10ª vez (as outras nove apresentações foram feitas seis no auditório do Centro Cultural do Mindelo - e nem por isso merece um cartaz na exposição que a instituição resolveu promover para lembrar os momentos que "marcam a história do Centro Cultural do Mindelo" - e três no auditório da Academia de Música Jotamont.) Esgotou sempre. Sempre teve uma procura muito superior à oferta, com um desespero na procura de bilhetes que por vezes roçou o surreal. Feitas as contas, neste momento, o espetáculo já foi visto por cerca de três mil pessoas. Notável, se tivermos em conta a realidade da ilha de S. Vicente!

O que faz com que a procura seja tão grande? Encontro três motivos: o primeiro, é a qualidade do trabalho, naturalmente. Se não fosse assim, não teria tanta gente querendo ver a peça. O segundo motivo, as opções de encenação, que passam por um registo cenográfico minimalista e uma construção toda ela sustentada num competente trabalho de interpretação. O terceiro motivo, é a identificação do público com o tema e, principalmente, com as personagens. Mesmo quando as histórias são estranhas, bizarras e surrealistas.

Inspirado no universo do dramaturgo Nelson Rodrigues, a peça retrata a vida de dez mulheres do Mindelo, de dez bairros diferentes da cidade. A separar as cenas, a intervenção do narrador que, com excelentes textos e interpretação de Carlos Araújo, nos leva a viajar por cada uma das zonas. Mas o que provoca esta atração das pessoas por estas dez estranhas mulheres?

Senão vejamos: uma é tão vaidosa que até as nódoas negras provocadas pela violência do marido são motivo de regozijo; outra é cleptomaníaca e polícia ao mesmo tempo; uma terceira tem tantos ciúmes que prende o namorado de forma a que fiquem juntos, para sempre, "como numa moldura"; outra é apresentadora de televisão que vira candidata a vereadora; outra uma beata que incomoda os vizinhos no domingo de manhã para dar catequese mas ao mesmo tempo tem uma vida paralela de luxúria e depravação; uma outra, excita-se irremediavelmente, só por ouvir o crioulo de Santo Antão; outra, só pensa em suicidar-se e ao verificar que o irmão gémeo morre primeiro fica furiosa com o fato; uma é noiva e só quer ser noiva, pelo que arranjar sempre forma de noivar e de romper antes de consumado o matrimónio; outra, é tão invejosa que chega ao ponto de convencer o namorado a matar uma terceira pessoa, para lhe poder roubar a pele e os olhos; e finalmente, uma mulher bonita que não se sente traída pelo fato de o seu marido a trair com outro homem e não com uma mulher. 

Estou cada vez mais convencido que nos cantos e recantos do Mindelo, nos becos, nos quartos, nos guethos, nos esconderijos, dentro dos carros, nas estradas e caminhos isolados, poderíamos encontrar muitas mais histórias destas, mais ou menos macabras e inacreditáveis. O sucesso da peça também se deve a isso: todos ficam encantados com a forma como lhes é permitido, de uma forma tranquila e divertida, espreitar pelo buraco da fechadura da sociedade mindelense. Melhor prenda que essa, não há!




Oh amor, dam un koza!

1. Na passada quarta-feira, enquadrado no ciclo de cinema "Cinco Filmes Cinco Livros", organizado pelo Centro Cultural Português, no Mindelo, tive oportunidade de rever a adaptação que o realizador Francisco Manso fez do romance de Germano Almeida, "O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo", todo ele rodado na cidade do Mindelo, no ano de 1996. Há 17 anos, portanto.

2. Foi com um misto de nostalgia e saudade que vi as imagens da cidade, dos amigos que tiveram papeis no filme - como Manuel Estevão, Paulo Miranda ou Euclides Sequeira - vi-me a mim próprio com um estilo de apresentador de Cabaret (a foto que ilustra esta crónica foi tirada no dia da filmagem com a Cize), e suspirei por ilustres figuras que apareciam no filme e que já nos deixaram, como o Sr. Nena, o Sr. Mário Matos (pai) ou Luís Morais. 

3. Recordei a noite mágica que foi a estreia do filme num Éden-Park completamente lotado, com uma anfitriã - Maria Luísa Marques - feliz e satisfeita, um conjunto bastante razoável de gente mais ou menos importante, mais ou menos conhecida, políticos, intelectuais, artistas e muitos anónimos que participaram nas filmagens como simples figurantes. 

4. O entusiasmo daquela primeira vez foi retumbante, lembro-me do orgulho do mindelense ao ver-se retratado num filme como aquele, dos risos ao se reconhecer esta ou aquela pessoa no grande ecrã, da basofaria e satisfação estampada no rosto de todos e de cada um quando rodeando a Praça Nova, se comentava o filme por todos os cantos e recantos da praça.

5. Tive outra sensação: recordando aqueles tempos, parece-me claro o quanto o nosso Mindelo se transformou, e não foi para melhor. Os cinemas fecharam, a Praça Nova deixou de ser aquele lugar aprazível que tanto gosto dava em passear, conversar, namorar, ver os amigos. Sair há noite pressupõe cuidado, com o medo dos assaltos, cada vez mais violentos, sempre presente. O alcatrão não é tudo e eu senti saudades da calçada nas ruas da morada.

6. Hoje, sempre que passo na Praça Nova, sinto uma energia ruim de que algo mau nos pode acontecer a qualquer instante, a que não será alheio o fato da praça ser uma montra e um resultado dos problemas sociais na ilha, com meninas cada vez mais novas em claras posturas de prostituição, muitas crianças pedindo dinheiro à porta da Fragata, drogados deambulando pelos cantos, jovens alcoolizados, mendigos deitados, não se sabe se a dormir, desmaiados ou mesmo mortos, porque ninguém se dá ao trabalho de verificar o que se passa. Até os loucos, que chegaram a ser símbolo da cidade - quem não se recorda do saudoso K'me Deus? - são hoje corpos estranhos que a maioria prefere ignorar. 

7. Mindelo, a minha cidade amada, mudou muito em 17 anos. Mudou ao ponto de uma grande amiga minha ter resolvido, depois de um período de 10 anos a estudar e trabalhar em Portugal, decidir-se a voltar a viver em S. Vicente e passado algumas semanas, ter voltado a colocar os seus poucos pertences numa mala e regressado, desencantada, à sua antiga condição de emigrante. "Aqui é muito nhê, nhê, nhê, muito falatório, muita riola. Não estava para isso."

8. Percebe-se que hoje seja a Júlia um dos grandes símbolos humanos e sociais da cidade do Mindelo. "Oh amor, dam un koza!". O encanto está lá, a vontade de seduzir também. Mas ninguém mais pode esconder a miséria e a degradação. "Oh, lindo, dam un koza!", parece pedir a cidade do Mindelo aos seus cidadãos. Mas a cidade fica sem resposta e um dia o Monte Cara se transformará no Monte Cala, aquele que fica em silêncio e por isso, consente. 

Mindelo, 04 de Outubro de 2013







Hoje em dia não é muito difícil preencher a página do Facebook com frases bombásticas, citações fantásticas de artistas, intelectuais e figuras históricas (o que não falta por aí são sites especializados em citações) cuja utilização nos fazem sentir mais inteligentes do que somos na realidade. A bem da verdade, eu próprio faço uso dessa estratégia de comunicação, portanto o problema não está aí.  O que me irrita é que, na maioria dos casos, fazemos uso dessas máximas sem conhecer minimamente nem o autor nem o contexto histórico em que elas foram proferidas. Não lemos, não estudamos, não aprofundamos, não refletimos. Nada. Isso sim, me irrita profundamente.

Estamos cheios de iletrados armados em doutores disto e daquilo, e o pior é que quanto maior o poder que tem em mãos - e há a considerar aqui muitos tipos e géneros de poder - maior é a soberba, maior a tendência de se armarem em chico-espertos, de se acharem melhores que todo o mundo e, no fundo - no fundo não! bem na superfície - o que mais se vê por aí é um bando de gente com o poder nas mãos mas que não sabe construir uma frase quanto mais elaborar um discurso digno desse nome. 

Falta estudo, falta leitura, falta profundidade, falta pesquisa, falta interesse. O nosso país está invadido de doutores de pacotilha sentados nos seus cadeirões, que falam do que não sabem querendo nos convencer que sabem mais do que todos os outros. Por isso se dizem impunemente tantas barbaridades e ninguém reage, ninguém diz nada. 

Talvez isso aconteça porque a sociedade civil que temos é também causa e consequência dos seus chefes, responsáveis, superiores hierárquicos ou líderes políticos. Anestesiada por uma ilusão de festa e abundância, de facilitismo e compadrio, não reage porque não tem nem a informação nem o conhecimento para o fazer. Está manipulada pelos mais variados cordelinhos que de forma frágil seguram o seu emprego, a sua posição, as suas benesses e a posição social que julgam possuir por mérito próprio. São moldados por um sistema educativo que não propõe desafios, não provoca a discussão, não exige pesquisa, não tolera a diferença.  

Temos que entender que apenas com o conhecimento nas suas mais variadas vertentes - através do estudo, da leitura, da investigação, do questionamento - conseguiremos tirar a cabeça da areia onde estamos atolados e perceber que há uma pergunta desarmante que sempre podemos fazer a esses donos da verdade: e tu, qual foi o último livro que leste?